A F.U.D.O.S.I. foi formada em 1934 “para proteger as liturgias sagradas, ritos e doutrinas das Ordens iniciáticas tradicionais de serem apropriadas e profanadas por organizações clandestinas”. A F.U.D.O.S.I. não era uma Ordem, mas uma Federação Universal de Ordens e Sociedades esotéricas e autônomas, portanto, um órgão administrativo antes de tudo.

“Algumas pessoas, cujas mentes ainda não receberam luz suficiente, desejam saber por que era necessária uma Federação Universal. As Ordens e Sociedades Iniciáticas que, no seu próprio campo de trabalho, desfrutam da mais absoluta e completa liberdade e perfeita autonomia e independência. A esta questão nós podemos responder que, mais que qualquer outra coisa, está no trabalho iniciático que a maior vigilância é indispensável e que uma disciplina internacional estrita e ativa deve ser exercida.

Nós devemos reconhecer e lamentamos a existência de muitos falsos profetas e vários auto-proclamados iniciados que usam, para propósitos egoístas e tirânicos de dominação, o pretexto da iniciação para explorar as pessoas crédulas e sinceras. Era tempo de advertir o público contra estes falsos líderes e contra doutrinas nocivas que eles ensinaram às almas confiantes.

Em cada país, cada Ordem autêntica e regular conhece seus imitadores e tais falsos profetas. Era necessário vigiar estes movimentos clandestinos, expor estes impostores ou instrumentos ocultos e evitar sua força, em todos os países, onde quer que eles estejam operando, e assim evitar qualquer confusão entre as Ordens regulares e autênticas e as Organizações falsas que são prejudiciais ou que ofereçam ensinamentos que nada têm a ver com a Tradição Universal e o Esoterismo.

E também era necessário que as Ordens autênticas tivessem cuidado ao selecionar os seus membros e oficiais e manter os seus adeptos e estudantes no caminho correto das verdadeiras doutrinas, obrigando-os a seguir uma linha estrita de disciplina, trabalho racional, sincero e consciencioso, para evitar ensinamentos radicais e heterodoxia. Este imenso trabalho que era pretendido e que protegia as Ordens contra os seus inimigos internos e exteriores foi efetuado com sucesso pela F.U.D.O.S.I. e continua ocorrendo.” (Jornal da F.U.D.O.S.I., novembro de 1946)

 

Friday, December 02, 2005

Pelos caminhos do Martinismo - Entrevista com Vinícius Branco e Mário Willmersdorf Jr. por Marco Antonio Coutinho


Conversar com Vinícius Branco e com Mário Willmersdorf Jr. foi uma idéia particularmente feliz. Em primeiro lugar, porque eu queria partilhar com vocês o muito que eles têm a nos oferecer. Em segundo lugar, porque, na verdade, conheço os dois há quase 30 anos. E embora não tenhamos particularmente deixado de nos ver durante esse tempo, essa entrevista não deixou de ser um reencontro. Conforme concluímos posteriormente, o trabalho teve o sabor dos longos debates e troca de idéias que tínhamos com muita freqüência nos anos que passaram. A idéia era conversar descontraidamente a respeito do Martinismo e da revista L'Initiation em língua portuguesa, que os dois estão editando pela Gnosis Editorial, que fundaram juntos. E foi assim que aconteceu. Um papo muito agradável que, repito, não conseguíamos ter já há algum tempo, em vista do dia a dia agitado que todos temos vivido. Assim sendo, gostaria de apresentar a vocês cada uma dessas duas cativantes figuras.



Vinícius Branco, carioca, 46 anos de idade, antropólogo e professor, vem de um longo percurso nas atividades do esoterismo tradicional, notadamente na Ordo Rosae Crucis, mais conhecida como AMORC, e na Tradicional Ordem Martinista, TOM, tendo participado ativamente de ambos os grupos, tanto no Brasil como na França. Divide praticamente todo o seu tempo entre as buscas esotéricas – atuando em vários setores de estudos, pesquisa e ação cultural – e o seu trabalho profissional como pesquisador e professor no meio universitário.

Mário Willmersdorf Jr., também carioca, tem 54 anos de idade e é jornalista, atuando principalmente na área cultural. Militou bastante na AMORC, durante os anos 70, e participou da fundação de um outro movimento esotérico, no final da década, do qual se retirou alguns anos depois. Em 1990, é iniciado na Ordem Soberana do Templo Iniciático - OSTI - uma expressão atual da antiga Ordem do Templo, fundada em 1988 por Raymond Bernard. Um dos principais implantadores da OSTI no Brasil, foi eleito, mais recentemente, Grão-Comendador da Ordem para o país. Posteriormente, recebeu na França a sagração tradicional martinista, na forma de livre-iniciador.


Valeu realmente à pena o nosso reencontro. Foram duas horas de papo, a maior parte do qual partilho aqui com os amigos do Spiritu Psique Soma.



Spiritu Psique Soma - A história da revista L'Initiation está estritamente ligada ao Martinismo, não é? Ela é uma revista que discute as tradições de uma maneira geral, mas está diretamente ligada ao Martinismo. Eu gostaria que vocês falassem sobre essa tradição específica. O que é o Martinismo?

Vinícius Branco - O Martinismo é uma das correntes espirituais, esotéricas e tradicionais mais importantes do Ocidente contemporâneo. Ele se estrutura à partir do século XVIII. O Martinismo é herdeiro de várias tradições, notadamente toda a cultura tradicional esotérica que foi produzida e realizada pelos Rosa+Cruzes do século XVII, os alemães, aqueles dos manifestos. Esses mesmos Rosa+Cruzes então deram as bases para as organizações que, no século XVIII, vieram assumir um papel preponderante no meio esotérico tradicional. Entre elas encontra-se a Maçonaria, a Ordem dos Elus Cohen – que funcionava dentro da própria Maçonaria – e a Ordem da Rosa+Cruz Áurea, que era uma organização rosacruz que se expressava como um sistema de graus superiores dentro da Maçonaria Escocesa regular. Você sabe, há aqueles três graus fundamentais – Aprendiz, Companheiro e Mestre. A partir dali, havia mais doze graus – que, em grande parte, aliás, a AMORC perpetua ...


SPS - Algumas pessoas pensam que esses nomes de graus utilizados pela AMORC atualmente teriam vindo da Golden Dawn. São anteriores?

VB - Muito anteriores à Golden Dawn que, aliás, pegou esses nomes das mesmas fontes que a AMORC. Ou seja, da Ordem da Rosa+Cruz Áurea, que era uma legítima, autêntica e extraordinária organização rosacruz do século XVIII. Havia, também no século XVIII, uma outra organização maçônica que tinha a pretensão de estar perpetuando aquilo que havia sido herdado da Ordem dos Cavaleiros Templários. Era a Estrita Observância Templária, também uma organização alemã. E o barão Von Hund, que foi o fundador desse rito, havia, segundo se diz, recebido dos próprios Stuart – que foram se exilar na França – os rituais dos Templários que eles haviam preservado na Escócia, por ocasião do exílio dos Templários naquela região. Quando os Stuart – desta vez eles mesmo exilados – vieram para o continente, trouxeram esses rituais que perpetuavam paralelamente à Maçonaria Escocesa. Eles então passaram esses graus ao barão Von Hund, e este criou um sistema de graus superiores, baseado nesses rituais ditos templários. Depois houve um reajustamento dessa organização, que ficou sendo conhecida como Regime Escocês Retificado. Este Regime foi levado para a França, e tanto Louis-Claude de Saint-Martin quanto Jean-Baptiste Willermoz, foram iniciados nessa organização.


SPS - E o que acontece então a partir daí?

VB - Louis-Claude de Saint-Martin e Jean-Baptiste Willermoz – dois místicos extraordinários do século XVIII – colegas e irmãos de ordem, tanto da Maçonaria, quanto da Ordem dos Elus Cohen, como da Estrita Observância Templária, e da Rosa+Cruz Áurea....


SPS - Tudo isso era, por assim dizer, "hospedado" pela Maçonaria?

VB - Todas elas. E os dois eram membros de todas essas ordens. E fizeram uma extraordinária síntese dos conteúdos, tanto litúrgicos e ritualísticos, quanto do que havia em termos filosóficos e iniciáticos. Mas eles tinham, cada um, uma concepção diferente.


SPS - Willermoz e Saint-Martin?

VB - Sim. Eles, em primeiro lugar, como discípulos diletos que eram do mestre Martinez de Pasqually mas – embora tivessem um grande interesse pelo aspecto filosófico da Ordem Elus Cohen – não se interessavam pelo trabalho prático teúrgico que era realizado por Pasqually.


SPS - O que seria a teurgia? Uma forma de magia?

VB - A magia sim, no sentido mais puro e ocidental da palavra. Theos, Deus, e urgos, que quer dizer agir sobre. Então é uma metodologia de trabalho que consiste em invocar as potências divinas – os anjos, os arcanjos, etc – de forma que eles se manifestem. Até a título de curiosidade, nós podemos dizer aqui que Allan Kardec praticou a teurgia na condição de maçon do rito Mênfis-Mizraïm, da maçonaria egípcia. E talvez não seja falso dizer que, ao criar o Espiritismo, ele estava, na verdade, tentando popularizar, ou criar uma metodologia simples de teurgia, já que ela está muito baseada nisso, na invocação de espíritos e potências que não estão manifestas no plano físico.


SPS - E a Ordem dos Elus Cohen aplicava cotidianamente essa teurgia mais elaborada e profunda?

VB - A Elus Cohen era uma ordem fundamentalmente teúrgica. Tinha um conteúdo filosofico que era rosa+cruz e cabalístico, e levava tudo isso à prática através da teurgia, que se baseia muito em rituais extremamente complexos e nas chamadas operações teúrgicas, assim como na oração, que tem um papel fundamental no trabalho teúrgico.


SPS - Saint-Martin e Willermoz então eram praticantes veteranos da teurgia....

VB - Sim. Eles foram os principais discípulos de Martinez de Pasqually, no século XVIII. Louis-Claude de Saint-Martin – que foi advogado numa primeira fase de sua vida – tornara-se militar. E foi em seu regimento que conheceu outros oficiais que eram membros da Maçonaria. Ele se interessou pela tradição maçônica e foi iniciado. Quando Saint-Martin estava ainda nos primeiros graus do Rito Escocês, Martinez de Pasqually fez uma viagem à região oeste da França, esteve em Bordeaux, onde fez uma palestra, e Louis Claude ficou encantado com a filosofia do mestre.


SPS - Foi aí então que eles se conheceram...

VB - Exatamente. Desde essa época ele se ligou profundamente a Martinez de Pasqually, até o ponto de, mais tarde, vir a ser o seu secretário particular.


SPS - Aliás as informações sobre Martinez de Pasqually são confusas e contraditórias. Há quem diga que ele seria espanhol ou francês, que seria um judeu português. Já se chegou a alguma conclusão a respeito da nacionalidade dele?

VB - Como muitos personagens da Tradição, ele era uma figura um tanto misteriosa. Até hoje existem muitas controvérsias sobre suas verdadeiras raízes. Mas fica quase certo que era de origem ibérica. E parece que nasceu na França. Os pais dele é que vieram da Península Ibérica para a França. Se eram judeus, também não se sabe, há também controvérsias. Alguns dizem que sim, e que foi graças a essa origem judaica que ele teria herdado a Cabala, que havia sido muito cultivada e preservada no sul da Espanha, na época do Califado de Córdoba. Mas outros negam isto, e mostram que ele inclusive se casou na Igreja Católica, que era batizado e católico praticante. Seja como for, ele foi um cristão.


SPS - Martinez de Pasqually era então o responsável pela Elus Cohen, quando Saint-Martin o conheceu...

VB - Exatamente.


SPS - Então Saint-Martin pertenceu a essa ordem, certo? E o que é então o Martinismo? Algum tipo de dissidência da Elus Cohen? Por que ele mudou a sua orientação espiritual e tradicional, já que havia nele aquela ligação tão forte com Pasqually e com a tradição que este preservava?

VB - O século XVIII foi um período efervescente no plano das idéias, das filosofias. Nós sabemos disso, não é? Toda a filosofia iluminista que orienta as democracias modernas foram forjadas nessa época. E no mundo da Tradição e do esoterismo não foi diferente. O certo é que, naquela época, havia várias fontes da Tradição Ocidental. Notadamente os Rosa+Cruzes, porque a própria Tradição Rosa+Cruz dividiu-se em vários ramos diferentes. Esses ramos, em contato com a Maçonaria, vieram a dar origem a vários sistemas de graus. Havia então vários mestres, assim como vários discípulos avançados da Tradição, que gostavam de criar graus superiores. Era uma verdadeira mania. Então foi uma época...Veja só, Rito dos Arquitetos Africanos, Rito dos Iluminados de Avignon, uma porção deles, todos consistindo na filosofia Rosa+Cruz, que passava pelo crivo e pela leitura particular de um mestre ou de um grupo de filósofos e mestres, eram acolhidos na Maçonaria, e se transformavam em graus superiores dentro da mesma.


SPS - O Elus Cohen era então um desses muitos ritos...

VB - Era um deles. Aliás, prestigioso pela pureza filosófica, mas muito fundamentado sobre o trabalho teúrgico. Rapidamente, tanto Louis-Claude de Saint-Martin, quanto Jean-Baptiste Willmermoz percebem que aquele caminho não era uma via necessariamente boa para se chegar à iluminação. Havia uma outra via – que eles mais tarde chamariam de Via Cardíaca, ou Via do Coração – que é um caminho de introspecção profunda na direção ao próprio Eu, até chegar à comunhão plena com a Divindade. Sem precisar invocar as potências intermediárias. Numa determinada época, em torno do final do século XVIII, Martinez de Pasqually parece ter herdado alguma coisa no Haiti, que naquela época era um ilha só, São Domingos. Hoje há dois países naquela ilha. Ela é dividida ao meio, e existe o Haiti de um lado e a República de São Domingos no outro, uma francesa e a outra espanhola. Mas naquela época era tudo Ilha de São Domingos. E Pasqually foi para lá, na parte que corresponde hoje ao Haiti, ex-colônia francesa. Parece que ele havia herdado algo na ilha, e viajou para tratar dessa herança. E nunca mais voltou. Dizem que hoje há ecos da Elus Cohen na América Central, oriundos diretamente de Martinez de Pasqually, por meio de uma iniciação que ele teria passado a pessoas lá do Haiti mesmo, e que depois migraram para as repúblicas da América Central. Mas isso também é uma coisa difícil de se constatar ou comprovar historicamente.


SPS - Mas ainda há escolas da Elus Cohen na França, não é? Os chamados Martinesistas...

VB - Sim, elas existem na Europa, descendentes de outros discípulos de Pasqually que perpetuaram aquele trabalho em território Europeu.


SPS - No inicio essa responsabilidade cabia a Louis-Claude de Saint-Martin e Jean-Baptiste Willermoz?

VB - Sim. Quando o mestre foi embora e desapareceu, os dois ficaram sozinhos com a responsabilidade de levar a Elus Cohen adiante. Mas eles não estavam mais interessados na Elus Cohen tal como ela era na época de Martinez de Pasqually. Preservaram a filosofia mística da Ordem, que era muito interessante: a história da queda do homem, de sua reintegração eventual através de todo um processo de mergulho na matéria densa, de uma passagem pelo sofrimento, conhecendo as contradições do mundo – a obscuridade e a luz – até essa reintegração plena. Nessa época, Willermoz já havia sido iniciado na Ordem Rosa+Cruz Áurea e na Ordem Retificada do barão Von Hund, a Estrita Observância Templária.


SPS - E quanto a Louis-Claude de Saint-Martin?

VB - Ele também havia recebido a iniciação nessas duas ordens. Bem...qual o mérito, o que há de extraordinário nessas duas figuras do século XVIII, esses colegas, irmãos, que beberam na mesma fonte? Ambos vão realizar – cada um de seu lado e cada um à sua maneira – uma síntese desse conhecimento obtido nessas fontes, particularmente na Ordem dos Elus Cohen.


SPS - Por que cada um à sua maneira?

VB - Porque eles tinham concepções diferentes. Willermoz achava que o conhecimento deveria ser transmitido sempre dentro de uma ordem estruturada. E que a ordem estruturada que havia chegado mais perfeita e íntegra no Ocidente era a Maçonaria. Portanto, no pensar de Jean-Baptiste Willermoz, era dentro da Maçonaria que o conhecimento tradicional e esotérico do Ocidente deveria ser armazenado e preservado. Ele vai então realizar aquilo que é considerado a maior obra de arquitetura maçônica do século XVIII, e que é chamada a Jóia da Maçonaria: o Rito Escocês Retificado. Mas era outro, porque antes já havia o do barão Von Hund. Willmermoz percebe que o caráter do trabalho templário é menos um trabalho de conhecimento e mais um trabalho litúrgico e simbólico de cavalaria. Ele nota então que a Ordem da Estrita Observância Templária tinha os mais belos rituais, os mais significativos e simbólicos, que eram os rituais cavaleirescos da Idade Média. Mas tinha pouca filosofia. Por outro lado, a Ordem dos Elus Cohen tinha uma filosofia perfeita, que estava inclusive em consonância com os conhecimentos da Ordem da Rosa+Cruz Áurea, de caráter eminentemente alquímico.


SPS - Willermoz então sintetiza tudo isso...

VB - Sim, o que é realmente uma coisa extraordinária. Em cima dos três graus da Maçonaria Escocesa clássica, ele vai criar uma outra ordem, de estrutura templária, que é a Ordem dos Cavaleiros Benfeitores da Cidade Santa, nome tirado do último grau da Estrita Observância Templária. Willermoz coloca então, dentro desses graus templários, os ensinamentos dos Elus Cohen – sem a teurgia – e os ensinamentos alquímicos da Ordem da Rosa+Cruz Áurea, sintetizados.


SPS - E quanto a Louis-Claude de Saint-Martin?

VB - Bem...você me desculpe se eu estou sendo muito prolixo, mas é preciso colocar bem o que são esses dois ramos nascidos da Elus Cohen...


SPS - ...o ramo de Willermoz e o de Saint-Martin?...

VB - ...exatamente. E até mesmo para saber o que eles são, porque hoje em dia a gente os separa cada vez menos. Eles têm uma ligação muito estreita, e na França, em particular, é uma ligação muito forte. E a revista L'Initiation trabalha para os dois ramos.


SPS - Perfeito. Então a gente pode dizer que na origem do trabalho de Saint-Martin estava o trabalho de iniciação livre, fora de ordens, como existe ainda hoje ao lado de ordens martinistas devidamente organizadas?

VB - É o que vai acontecer... Veja bem. Qual era a discordância de Louis-Claude de Saint-Martin, em relação a seu irmão Willermoz? É que ele achava que todo aquele conhecimento não deveria ficar restrito aos templos das ordens estruturadas. Pensava que aquilo deveria ser oferecido a todo buscador sincero, fosse homem ou mulher, brancos, negros, de qualquer nacionalidade, de qualquer idade. Não importava, desde que a pessoa em questão fosse um buscador sincero. Ele então passou a transmitir esse conhecimento – o mesmo conhecimento que integrava dos graus do Regime Escocês Retificado – de forma livre. Mas quando se diz livre, isto não quer dizer a qualquer um, nem que fosse de forma aberta ao público. Ele formava grupos seletos, no salões e nos casarões das grandes famílias da França, de pessoas de elevada posição social, que normalmente eram quem patrocinava essas reuniões. O que não quer dizer que não houvesse pessoas de origem mais modesta, até mesmo porque Louis-Claude de Saint-Martin foi um dos principais defensores dos princípios da Revolução Francesa, os princípios democráticos, com os quais ele estava em plena ressonância...


SPS - É inclusive atribuído a Saint-Martin um comentário, feito no momento pré-revolucionário, de que antes de se anunciar a boa-nova, é necessário limpar o ar...

VB - Exatamente, é verdade. Ele realmente tinha uma identificação muito grande com os ideais revolucionários e uma grande esperança. Evidentemente não em relação àquilo que aconteceu depois, que foi o Reino do Terror, com aquelas execuções massivas da época de Robespierre, aquela situação que não correspondia mais ao idealismo dos primeiros revolucionários, que era construir uma sociedade mais justa e mais igualitária.


SPS - E como foi o trabalho de Louis-Claude de Saint-Martin em meio a esse contexto?

VB - Ele tinha essa visão do esoterismo que é expressa naquela famosa definição de iniciação. Segundo ele mesmo, a única iniciação que ele reconhecia era aquela em que o indivíduo entrava no coração de Deus, e Deus entrava em seu coração, de modo que, nesse encontro, fosse realizado o milagre da Unidade...


SPS - Inclusive isto hoje é colocado, por alguns críticos das sobrevivências martinistas, como questionamento entre a ligação desses cenáculos com o próprio Saint-Martin. Interpretam essa concepção do filósofo como se fosse uma forma do mesmo renegar qualquer organização ou qualquer ordem. Isto é uma forma de se questionar a legitimidade dos grupos martinistas que sobreviveram até os nossos dias. O que você pensa disso? Há alguma contradição entre essas escolas e grupos martinistas e o trabalho original de Saint-Martin?

VB - Na verdade, a transmissão Louis-Claude de Saint-Martin deu-se de maneira secreta e ininterrupta até os dias de hoje. Ela continua a ser feita. Essa transmissão se dá tanto dentro de ordens iniciáticas estruturadas, quanto em grupos não-estruturados, que são os chamados grupos martinistas livres, que se parecem muito mais com o trabalho original, criado por Louis-Claude de Saint-Martin. Na verdade não existe nenhuma contradição, no sentido de que Saint-Martin renunciou a sua filiação a todas as ordens. No final, ele se afastou da militância de lojas das diversas organizações autênticas das quais ele fazia parte. E passou a fazer um trabalho direto com os indivíduos, uma transmissão direta. Fazia a transmissão através de um ritual sumário, muito simples. Ele primeiro preparava a pessoa, com instruções. E quando percebia um certo grau de maturidade naquela pessoa, transmitia a ela uma iniciação de S.I. – Superieur Inconnu, ou Superior Incógnito. A partir dali, essa pessoa era um Martinista pleno...


SPS - Podendo inclusive iniciar outras pessoas?

VB - Inclusive iniciar outras pessoas... Aliás, era isso que ele esperava que fosse feito. Que cada S.I. fosse capaz de, num momento oportuno, transmitir aquilo que havia recebido para uma outra pessoa, que deveria lhe suceder. De modo que nunca essa corrente fosse rompida. A posterior criação da Ordem Martinista teve motivos bem precisos.


SPS - Diz-se que o Martinismo sob a forma de ordem foi uma criação de Papus. Isso procede?

VB - Absolutamente sim. A primeira ordem martinista estruturada foi a de Papus. Ele constitui o primeiro Conselho Supremo em 1891. Reuniu alguns membros, a nata dos grandes mestres, filósofos e iniciados das diversas ordens tradicionais da época, e constitui então o Conselho Supremo, criando a Ordem Martinista, com objetivos bem precisos, como eu falei antes e pretendo explicar melhor mais adiante.


SPS - Bem, a filiação de vocês dois, Vinícius e Mário, é autenticamente Martinista, mas sob formas diferentes, certo? Vinícius é membro da Tradicional Ordem Martinista, não é? Qual é a origem deste ramo particular da via martinista? Ela tem uma ligação direta, é nascida da Ordem Martinista fundada por Papus?

VB - Exatamente. Em 1916, Papus vem a falecer na França, em decorrência de uma doença contraída nos campos de batalha da I Guerra Mundial, onde ele era um médico abnegado. Antes disso, em 1914, a Ordem Martinista estava como que adormecida, porque a Europa já se encontrava transtornada pela I Guerra. Nessa época, inclusive, deixa de ser publicada a L'Initiation, que já existia. Logo depois do fim da Guerra é escolhido, para suceder Papus, o membro Charles Detré, mais conhecido pelo seu nome místico de Téder. Mas ele vive apenas mais um ano. Assume então a direção da Ordem Martinista outro membro, Jean Bricaud. Só que ele faz uma levadice. Sendo um maçon realmente muito ligado àquela tradição, ele como que maçoniza a Ordem Martinista. Transforma a Ordem Martinista num sistema de graus superiores da Maçonaria. Onde, para você ser iniciado como Associado [o grau inicial martinista] teria de ter o grau de Mestre Maçon. Só a partir daí você poderia ser recebido como Associado, depois Iniciado e, finalmente, Superior Incógnito. Quando Bricaud faz isso, não apenas cria a obrigação de se ser maçon para se tornar martinista, como, conseqüentemente, exclui as mulheres, o que contraria completamente a idéia original de Saint-Martin, que era de incluir as mulheres. Ele havia sido, inclusive, fortemente apoiado por elas nos salões, exatamente pelo fato de incluí-las. Jean Bricaud então realiza essa fusão do Martinismo com a Maçonaria que, em grande parte, foi um trabalho de exclusão das irmãs e daqueles que não eram maçons. Isso foi por volta do início dos anos 20.


SPS - E não houve qualquer divergência quanto a esse gesto, da parte de outros martinistas?

VB - Um outro membro do Conselho Supremo da Ordem Martinista lidera um movimento de divergência. Este foi Victor Blanchard....


SPS - ...que foi inclusive um oficial muito ativo da FUDOSI...

VB - Ele foi um dos três imperatores fundadores da FUDOSI, ao lado de Émile Dantinne e Harvey Spencer Lewis. Pois bem. Blanchard discordava dessa maçonização obrigatória do Martinismo e da ausência das mulheres. Por outro lado, ele restaura nos meios martinistas as práticas teúrgicas, o que também era fugir um pouco da tradição martinista original. Quando isto aconteceu, ficaram então existindo essas duas ramas da Ordem Martinista. Já no comecinho dos anos 30, a figura de Augustin Chaboseau vai receber uma nova projeção. Chaboseau foi aquele que havia autenticado a iniciação de Papus. Porque a linhagem martinista de Papus era duvidosa. Havia um elo que faltava na linhagem de Papus, enquanto a de Chaboseau era íntegra, completa e perfeita. Os dois trocaram inciações entre si e, desta forma, a iniciação de Papus ficou completa. Ficaram então em igualdade de condições. E eram ambos homens brilhantes. Papus era mais social, mais empreendedor, Chaboseau era uma pessoa mais silenciosa, reservada, de grande cultura e erudição.


SPS - De certa forma então os dois se completavam, certo? Papus era o grande organizador, o homem de proa, e Chaboseau o homem dos bastidores, que organizava mais intimamente a transmissão.

VB - É isso aí. Você disse tudo agora.


SPS - E o que aconteceu então?

VB - Com a morte de Papus, Augustin Chaboseau ficou sendo aquele que detinha a origem mais pura do Martinismo. Ele é então procurado pelos membros mais antigos do Conselho Supremo, inclusive membros fundadores – entre os quais devemos citar Victor-Émile Michelet e Chamuel (Lucien Mouchel), membros da primeira formação do Conselho Supremo – que procuram definir as coisas: havia naquele momento uma ordem martinista, mas que não era mais propriamente martinista, e sim um rito maçônico. De outro lado, a teurgia de volta, dentro do Martinismo...


SPS - ...e que o Martinismo original havia abandonado...

VB - Exatamente. Esta era a organização do Victor Blanchard, a Ordem Martinista e Sinárquica, que existe até os nossos dias, e é uma das mais difundidas. Augustin Chaboseau cria então a Ordem Martinista Tradicional. Ele acrescenta aí a palavra Tradicional, para marcar bem a volta à tradição martinista original, de Saint-Martin.


SPS - Então daí nasceu a Ordem Martinista Tradicional que, no Brasil, chama-se Tradicional Ordem Martinista, não é? E essa ordem está hoje dentro da AMORC, certo? Como uma ordem acessível ao membros da AMORC, a partir de um determinado grau, não é isso?

VB - Exatamente.


SPS - Mas não haveria aí uma contradição semelhante à de Jean Bricaud? Ou seja, assim como Bricaud limitou a filiação à sua ordem aos maçons, a Tradicional Ordem Martinista, ao limitar a filiação a seus quadros a rosacrucianos da AMORC de um determinado grau, não estaria fugindo do Martinismo original?

VB - Não foi sempre assim. A OMT foi criada por alguns dos fundadores da primeira Ordem Martinista, entre eles o detentor da mais reconhecida linhagem, o orientalista Augustin Chaboseau. Ao saber da criação da OMT, que parecia mais prestigiosa do que as outras, pelos nomes que a fundaram, o Imperator da AMORC, Harvey Spencer Lewis, iniciador livre da Ordem Martinista e Sinárquica, enviou rapidamente o seu filho Ralph à Europa para conhecer melhor as motivações e o trabalho da OMT. Persuadido do valor desta Ordem, Ralph Lewis – que também fora iniciado na OMS – recebeu as iniciações e a sagração de iniciador livre de Chaboseau e Lagrèze. Recebeu também uma carta patente da OMT para a criação de uma Grande Oficina para as Américas. Em contradição com setores reacionários da FUDOSI, Chaboseau autorizou Lewis a apresentar os ensinamentos da OMT da América sob a forma de monografias, a título experimental, como já vinha sendo feito com os ensinamentos de base da rosa+cruz da América, a AMORC. Pouco depois, em 1939, H. Spencer Lewis passa pela Grande Iniciação e Ralph se torna Imperator da AMORC, acumulando o título de Grande Mestre Regional da OMT para as Américas. As duas ordens eram separadas, embora o seu principal dirigente, na América, fosse o mesmo. A filiação à OMT não tinha como pré-requisito a filiação à qualquer outra ordem iniciática.


SPS - Logo depois veio a II Grande Guerra...

VB - Exatamente. Muitos dirigentes das ordens iniciáticas foram presos, executados ou tombaram na resistência. Alguns arquivos importantes desapareceram para sempre. Com o armistício, em 1945, Augustin Chaboseau, que detinha o título de Soberano Grão-Mestre, tentou reorganizar a OMT. Infelizmente, menos de um ano depois ele faz a Grande Iniciação. O seu filho Jean, grande erudito do esoterismo, assume o grão-mestrado. Poucos meses depois, Lagrèze faz a passagem – Michelet e Chamuel já não estavam mais entre nós – e assim os últimos integrantes do primeiro Supremo Conselho com Papus partiram para o Oriente Eterno. Jean Chaboseau se desentendeu com os membros restantes e, como as querelas se agravaram, dissolveu a OMT européia, ou o que restava dela. Enquanto isso, na América, a OMT florescia sob a batuta de Ralph Lewis, James Witcomb, também iniciado por Chaboseau, e outros rosacrucianos entusiastas do Martinismo. Os ensinamentos da OMT – herdados também da Ordem Cabalística da Rosa+Cruz e da Ordem do Lírio e da Águia, que estavam associadas ao Martinismo – eram dispensados por monografias, mas as iniciações eram conferidas nas Heptadas da Ordem, por iniciadores devidamente qualificados. No início dos anos 50, com o fim da FUDOSI, e por sugestão de alguns antigos membros da OMT da Europa – entre os quais Jeanne Guesdon e o próprio Jean Chaboseau – Ralph Lewis assume o título de Soberano Grão-Mestre da OMT e estende suas atividades, à partir da América, para o mundo. Graças ao apoio da extensa e bem organizada estrutura da AMORC, o martinismo nunca tinha tido tantos membros entusiastas, num número tão grande de países.


SPS - Foi aí que passou a ser necessário ser membro da AMORC para candidatar-se à OMT?

VB - Até os anos 60 a filiação à OMT, ou TOM, como é chamada nos países de língua portuguesa, era livre. Mas dois fatores fizeram mudar esta situação. Em primeiro lugar, o método peculiar de ensino dirigido, que estabelece certos conteúdos básicos para cada grau, sendo o nível mais alto, o Círculo dos Filósofos Desconhecidos, onde os membros qualificados, que alcançaram a plenitude martinista, dedicam-se à pesquisa sobre diferentes disciplinas tradicionais. A diferença metodológica na transmissão dos conhecimentos foi um dos fatores da restrição dos rituais da OMT aos membros da AMORC. Um outro fator importante foram as querelas existentes entre diferentes grupos martinistas que trocam entre si severas críticas e defendem de forma intransigente diferentes posições. Procurando fugir dessas confusões a OMT realiza o seu trabalho iniciático e tradicional, deixando cada membro livre para pesquisar e buscar, mas sem se envolver administrativamente, enquanto instituição, com outros movimentos. Mesmo em relação à AMORC ela é independente no que tange aos ensinamentos e rituais, e as responsabilidades tradicionais e litúrgicas, partilhando com a AMORC apenas a gestão dos recursos materiais. Não devemos esquecer que o Martinismo é um ramo da Tradição Rosa+Cruz e que mesmo Papus sonhava com a fusão das organizações Rosa+Cruzes e Martinistas. Hoje a TOM, ou OMT, é a possibilidade que se oferece aos rosacruzes da AMORC de receberem uma legítima iniciação martinista. É preciso lembrar que a TOM é a organização martinista que tem mais membros em todo o mundo.


SPS - Mário, a sua filiação martinista é um pouco diferente. Você não é membro da AMORC e nem da Tradicional Ordem Martinista. Como chegou ao Martinismo, e qual é o Martinismo que você professa?

Mário Willmersdorf Jr. - Olha, só uma retificação: eu sou membro inativo da AMORC. Minha formação toda, o meu ponto de encontro com os estudos e a formação tradicionais foram na AMORC. Depois de um certo tempo eu me afastei, mas continuo pertencendo à Ordem, mesmo afastado, e ingressei em outros caminhos, especialmente na Ordem Soberana do Templo Iniciático, a OSTI, fundada por Raymond Bernard. Para mim, o Martinismo, até então, representava algo a respeito do qual eu tinha uma atração muito grande, mas estava um pouco inacessível, digamos assim...


SPS - Inacessível por que?

MW - Inicialmente por causa do excesso de trabalho junto à OSTI. Depois, porque eu ainda não havia priorizado o Martinismo em minha vida. Essa opção estava como que na prateleira, aguardando o momento oportuno.


SPS - Mas você ainda tem muito trabalho junto à OSTI. Você não é o Grão-Comendador para o Brasil?

MW - Sim, o trabalho da OSTI sem dúvida é enorme. Mas felizmente no estágio atual da Ordem, quando todo o material básico já se encontra em Português e o coisas vão seguindo seu curso natural, já não há mais a pressão enorme que tínhamos até bem pouco tempo. Além do que na OSTI tenho uma equipe de trabalho afinada, na qual deposito toda a confiança. Por outro lado, o chamamento não escolhe hora. E, felizmente, quando ele se deu, no caso do Martinismo, eu me encontrava interiormente pronto para atendê-lo. Esse acúmulo de responsabilidades tem também um lado fascinante, que é a complementaridade dos ensinamentos, informações e práticas. É impressionante como um auxilia o outro...


SPS - Tudo tem o seu momento, né?

MW - Eu não falo o “momento azado”, senão você me mata! [ risos gerais]. Mas a partir de uma viagem a Paris – e por meio de um amigo e de uma amiga – fui apresentado ao editor-geral da revista L'Initiation, Yves-Fred Boisset, um livre iniciador martinista, da linhagem mais tradicional de Saint-Martin, que chegou até ele. Fui então iniciado por Boisset nos três graus martinistas, até mesmo em função do trabalho a ser desenvolvido na L'Initiation aqui, com a missão de ser um dos responsáveis pela edição brasileira da revista e pela formação de um grupo de difusão martinista. Este grupo é o GERME, Groupe d'Etudes et Recherches Martinistes et Spirituelles, que nós chamamos aqui de Grupo de Estudos e Pesquisas Martinistas e Espirituais. Ele pretende divulgar a filosofia do trabalho martinista para pessoas inclusive não afiliadas ao Martinismo, mas que se interessem pelo assunto.


SPS - Seria algo como um desdobramento cultural do Martinismo?

MW - Exato. E a revista L'Initiation, aqui, está empreendendo – digamos assim, inicialmente de uma maneira muito contida – um trabalho de divulgação do Martinismo. Ela foi feita para isso.


SPS - Aí no caso o Martinismo como um todo, né? As várias tendências do Martinismo podem se encontrar no GERME? Por exemplo, você tem a Tradicional Ordem Martinista, tem os martinistas livres iniciadores, a Ordem Martinista e Sinárquica, etc. Poderão unir-se todas essas ramas, ou o círculo está ligado a uma rama específica?

MW - O grupo se propõe a reunir estudiosos da Tradição.


SPS - Mesmo não martinistas?

MW - Mesmo não martinistas.

VB - É preciso frisar bem que o GERME não tem estrutura, não tem registro civil, não é uma organização. Ele é apenas um tipo de trabalho que tem como objetivo difundir a filosofia do Martinismo, pura e simplesmente. As idéias de Louis-Claude de Saint-Martin e Papus, notadamente – esses são os principais – e de todos aqueles que seguiram essa filosofia, que escreveram artigos na revista L'Initiation, etc. Então o trabalho do grupo é um trabalho de divulgação dos conteúdos da filosofia martinista. Para qualquer pessoa. É aberto ao público em geral. Não tem nenhuma estrutura...

MW - E nem pretende ter...

VB - ...nem pretende...é preciso que isso fique bem claro...


SPS - Não é uma organização estruturada, não tem a pretensão de ser uma ordem...Ok. É uma idéia bem clara. E quanto a você, Mário, como é que você se coloca nisso, em termos de formação pessoal?

MW - Minha formação é basicamente uma formação rosacruz, templária e hoje aberta ao Martinismo que, para mim, é uma coisa extremamente enriquecedora. Não existe nenhuma separação, nenhuma dicotomia.


SPS - Mas existe alguma possibilidade dessa livre iniciação se perpetuar no Brasil, com a transmissão também a outras pessoas?

VB - Quem sabe um dia? [risos]

MW - Um primeiro esclarecimento: Yves-Fred Boisset é um livre iniciador, como existem outros na França e no mundo. Quanto à perpetuação dessa iniciação no Brasil, eu diria que desde a época de Saint-Martin essa iniciação existe, ela se expandiu e o Brasil não está fora do contexto mundial...

VB - ...até na medida em que existem as ordens estruturadas. Elas também estão passando a iniciação autêntica do Martinismo, exatamente através da TOM e da OMS, que são as duas melhor instaladas por aqui...

MW - ...mas dentro da pergunta que você colocou, que é a respeito da livre iniciação, é uma coisa que eu não vejo porque não ser feita, se existe no mundo inteiro. Eu acredito que vá chegar um momento em que ela será transmitida também no Brasil, por que não?


SPS - A gente sabe mais ou menos qual é o papel de uma ordem martinista, de transmitir a Tradição segundo uma forma específica de trabalho. A gente compreende o papel de uma ordem martinista, seja a Tradicional Ordem Martinista, a Ordem Martinista de Paris, a Ordem Martinista e Sinárquica, dentre outras igualmente válidas e autênticas. Mas qual seria o papel de um livre iniciador, que não está integrado em nenhuma dessas ordens?

MW - Dentro do contexto do Martinismo, há duas vias, como o Vinícius falou há pouco. Uma delas, dentro de ordens estruturadas, e a outra fora das ordens, a partir de um iniciador, que perpetua uma linhagem fora das ordens. Mas é um trabalho martinista como todos os demais. Que existiu, existe e existirá sempre.

VB - De fato o martinismo original foi difundido por intermédio de livre-iniciadores em círculos informais. Essa difusão era muito séria, criteriosa e de alta qualidade até o período anterior à Grande Guerra. Com a proliferação de ordens martinistas e de livre-iniciadores, a possibilidade de uma transmissão pouco séria aumentou muito. Muitas linhagens são verdadeiras imposturas. Daí a grande necessidade de se avaliar bem uma linhagem antes de segui-la. Há também o problema do preparo intelectual e espiritual do livre-iniciador que é capital para o candidato à iniciação.


SPS - Mas em uma ordem estruturada o martinista tem as sua trocas, recebe as suas instruções. Como estuda, forma-se e aperfeiçoa-se o livre iniciador, uma vez que está só?

MW - Neste caso, sem dúvida, a responsabilidade individual é muito maior. Nos dois sentidos, tanto do iniciador quanto do iniciado. O primeiro dando sugestões de estudos, exercícios, e acompanhando o caminhar do seu discípulo. E este buscando realizar os trabalhos propostos da melhor maneira possível, respondendo, especulando, mergulhando nos temas que lhe foram confiados.


SPS - É então no GERME que o livre iniciador poderia trabalhar, não digo como iniciador, mas como animador cultural de temas ligados à Tradição?

MW - Não vejo porque não. Qualquer martinista, qualquer S.I. de qualquer um dos grupos martinistas, estruturados em ordens ou não, poderia fazer um trabalho como esse.


SPS - A gente nota o seguinte: no mundo da Tradição, as ordens são muito ciosas de seu espaço, do aspecto específico dessa Tradição que elas expressam. O Martinismo, pelo que podemos observar – embora também seja muito cioso do que transmite – tem um diálogo maior. Há um arejamento maior entre os grupos martinistas, que parecem mais abertos uns aos outros, para troca de idéias, pelo menos em nível cultural. Isso faz o Martinismo aparecer como uma tradição mais aberta para essa troca, do que em outros meios tradicionais...

MW - No geral, sim. Isso mostra bastante bem o espírito martinista, a coisa da troca de idéias fraternalmente entre martinistas de diversas ordens ou grupos. Agora, isso não é específico do Martinismo. É claro que, onde quer que seres humanos se reúnam, pode eventualmente haver problemas de ego, limitações provenientes da natureza humana, que é falha. Mas isso é inevitável.


SPS - Vamos falar um pouco da Gnosis Editorial. Vocês fundaram a editora e o carro-chefe, ao menos aparentemente, é a revista L'Initiation, não é? É uma revista muito tradicional. Desde quando ela é publicada na França?

VB - Na França ela começou a aparecer em 1888...


SPS - ...que aliás é um ano-chave na história recente da Tradição Ocidental, né?

MW - Só p'ra lembrar, foi o ano em que a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, aqui no Brasil...


SPS - Exato, e foi a fundação – se não me engano – de uma das ordens cabalísticas mais importantes do Ocidente ...

VB - ...a Ordem Cabalística da Rosa+Cruz, que era , talvez, o ramo mais prestigioso da Tradição Rosa+Cruz na época. Até porque ela era herdeira legítima da Ordem Rosa+Cruz de Toulouse...


SPS - Do visconde de Lapasse...

VB - ...exatamente... e foi essa mesma ordem que transmitiu a tradição R+C para Adrién Péladan, que era irmão do Josephin Péladan [Sâr Mérodack]. Adrién então iniciou o próprio irmão, e iniciou também o Stanislas de Guaita, um aristocrata da Savóia, que mais tarde tornou-se o principal responsável e Grande Mestre da Ordem Cabalística da Rosa+Cruz, a qual, um pouco mais tarde ainda, vai se fundir com a Ordem Martinista.


SPS - Eu queria que você falasse um pouco dessas ligações da Ordem Cabalística da Rosa+Cruz com o Martinismo. Parece que uma das duas servia de preparação, de pátio externo para a outra...

VB - A Ordem Cabalística da Rosa+Cruz tornou-se o círculo interno da Ordem Martinista na época.


SPS - Isso na época de Papus...Mas por que Papus fundou a Ordem Martinista, se o Martinismo vinha sendo transmitido, havia tanto tempo, sob a forma de iniciação livre, de iniciador para iniciado?

VB - Aquele era um momento crucial da Europa, que estava se estruturando. Foi o período da expansão máxima do colonialismo europeu, em que as potências começaram a disputar mercados. Já se começava a delinear no horizonte o grande conflito armado que foi a I Guerra Mundial. Então era uma época de grandes contatos entre o Oriente e o Ocidente. A Inglaterra, com seu vastíssimo império colonial, tinha, bem dentro de seu quintal, simplesmente a Índia. Foi nessa época que Madame Blavastky foi para lá e instruiu-se nas iniciações orientais, criando no Ocidente a Sociedade Teosófica. E esta, na verdade, foi uma das grande razões para o Papus criar a Ordem Martinista – ou uma delas, uma das mais importantes. Foi o fato de a Sociedade Teosófica estar, de uma certa maneira, puxando para o mundo anglo-saxônico, notadamente para Londres, a sede da liderança espiritual da Europa. Papus queria evitar que essa transferência se desse de Paris – que vinha sendo, desde séculos, o grande centro espiritual da Europa – para Londres. Como ele sabia que os martinistas eram, de uma certa maneira, a elite da espiritualidade francesa, mas que eles estavam dispersos, porque não havia uma ordem estruturada, resolveu então reunir todos esses iniciados numa única ordem, de modo a dar maior organização e peso ao Martinismo. Isso ajuda inclusive a explicar o fato de que Teosofia é muito mais forte nos países do mundo anglo-saxônico, enquanto que nos países onde o Martinismo se fortaleceu – notadamente os países latinos – a Teosofia teve muito menos influência. Outro ponto, é que Papus discordava de Madame Blavastky, de que nós devêssemos nos impregnar de espiritualidade oriental, porque tínhamos na própria espiritualidade ocidental todos os elementos necessários...


SPS - Havia então uma expressão ocidental da Tradição, e bem madura...

VB - Exato. Mas havia também uma certa tendência das pessoas se esquecerem disso. Aí as pessoas se tornavam budistas, hinduístas, etc, em busca da Tradição. E Papus dizia que a tradução dessa tradições – que são nobres e muito elevadas, ele tinha muito respeito pelas tradições do Oriente – é complicada, porque há termos e conceitos que não são da nossa cultura. Então há um grande risco de distorção.


SPS - Seria uma volta muito grande para pegar algo que já havia aqui, na nossa cultura.

MW - Há também um outro motivo. Papus considerava que, na época, a Maçonaria estava fugindo de seu objetivos originais e havia se transformado em um clube de amigos. Então, de alguma maneira, quis criar algo que considerou na época mais sólido e que reunisse realmente aquelas pessoas voltadas para o esoterismo.


SPS - É então nesse contexto de transformação que, em 1888, surge a L'Initiation...

MW - ...que foi como que a porta-voz de todo esse movimento...


SPS - ...e desde então vem sendo publicada quase que ininterruptamente. Houve um período em que ela adormeceu, digamos assim, deixou de ser publicada. Que período foi esse?

MW- De 1916, com a morte de Papus, até 1953, quando, o filho de Papus, Philippe Encausse, resolve ressuscitar a revista e continuar o trabalho do pai. De lá para cá, ela nunca mais deixou de ser publicada.


SPS - E a revista então é o carro-chefe da Gnosis...

MW - Na verdade, a Gnosis nasceu da própria L'Initiation. A partir do momento em que nos foi colocada a missão de publicar a revista aqui, nós tínhamos de ter como lançá-la legalmente. Ou nós entregávamos isso para uma editora, ou assumíamos e controlávamos integralmente o processo. Esta foi a nossa opção. E então criamos a Gnosis Editorial, e a partir do momento em que tivemos de criar uma editora, consideramos que seria interessante utilizar essa estrutura e divulgar o conhecimento tradicional – muita coisa que ainda não foi lançada aqui – para facilitar o acesso do público a essas obras.


SPS - E além da revista o que vocês estão planejando lançar?

MW- Em dezembro estaremos lançando um livro do Papus – que inclusive foi você quem traduziu – e já em novembro vamos lançar o livro do Yves-Fred Boisset, que é o editor internacional da L'Initiation, e um dos maiores estudiosos de Saint-Yves d'Alveydre em toda a Europa. Ele escreveu este livro, cujo título é...

VB - ...o título ainda não está definido, este ainda não é o título definitivo...


SPS - ...título provisório...

MW - ...claro, super provisório, que seria Saint Yves D'Alveydre - a Sinarquia, o Arqueômetro e as Chaves do Oriente [o livro foi lançado em 3 de dezembro, exatamente com este título]. Neste trabalho ele faz um estudo aprofundado do sistema sinárquico, uma interpretação do que Saint-Yves d'Alveydre coloca a respeito da sinarquia. Aborda também, de uma forma brilhante, o Arqueômetro – que é uma coisa bastante complicada – e, enfim, nas Chaves do Oriente, o texto é um facilitador muito grande para a compreensão da obra de Saint Yves d'Alveydre, que nós consideramos um autor chave dentro do panorama esotérico.


SPS - Vocês citaram aí o termo sinarquia, que ficou meio duvidoso hoje em dia, particularmente depois da apropriação do termo por organizações de extrema direita, como a Sinarquia do Império – e seu braço armado, a Cagoule – assim como a própria Ordem do Templo Solar, de triste memória. Eles transformaram o termo num sinônimo de maquinação política. O que, originalmente, os martinistas consideram que seja exatamente a sinarquia?

MW - Marco, a idéia do sistema sinárquico, que é muito antiga, foi resgatada e defendida por Saint-Yves d'Alveydre. Nesse livro que estaremos lançando em novembro, Yves-Fred Boisset – grande autoridade em Saint-Yves d'Alveydre – lembra que a maioria dos raros autores sérios que se dedicaram ao estudo desse aspecto específico da Tradição nunca se deteve nas definições desta palavra, o que seria realmente um trabalho particularmente difícil. Ele destaca, no entanto, a definição de Weiss, que diz que a sinarquia é exercida e pertence àquele que é capaz de ensinar aos outros, por estar mais avançado na via da iniciação. Mas é um assunto muito amplo e complexo, que pede um exame aprofundado. Acho que não cabe num papo rápido como esse nosso aqui.

VB - Exato. Sobre este assunto vou te dar a minha opinião pessoal. A sinarquia não é um regime político, embora possa inspirar governos com diferentes orientações. Não é tampouco uma sociologia esotérica embora possa servir de base para uma ciência social tradicional. Os princípios sinárquicos de governo foram conhecidos desde a mais alta antigüidade e colocados em operação por muitos governantes. O termo Sinarquia vem do grego, significando “governo da unidade”, e foi cunhado no século XIX pelo marquês Saint-Yves d'Alveydre. A divisão trina do Homem em corpo, alma e espírito, reflete-se no seu corpo físico como aparelho digestivo, o sistema cardiocirculatório e o sistema nervoso. As sociedades que os homens criam, o ser coletivo, também obedecem a essa estrutura, com as suas dimensões econômica, jurídico/política e cultural. Trata-se pura e simplesmente da aplicação do método analógico praticado pelas ciências tradicionais ao plano social. A Sinarquia inspirou regimes republicanos, monárquicos, democráticos, autoritários, de esquerda e de direita. Ela nos dá conta de certos princípios universais e gerais que regem as sociedades mas não corporifica um sistema estrito de governo. Um grupo político conservador de inspiração esotérica existiu na França nos anos intermediários entre as duas Grandes Guerras, denominado Sinarquia do Império, mas nunca alcançaram os seus objetivos. As leis sinárquicas sempre acabam prevalecendo, mesmo que não sejam respeitadas, manifestando-se como grandes desarmonias sociais. Um regime realmente baseado nos princípios sinárquicos terá de estar baseado na eqüidade e na fraternidade, pois de outro modo não vingará


SPS - Vinícius, você é uma pessoa que tem um já longo caminho de participação nos movimentos progressistas da sociedade civil organizada. Paralelamente, tem também uma participação nos movimentos do esoterismo tradicional praticamente desde a adolescência. Há quem veja nisso uma contradição. Como é que você se posiciona quanto a isto? Acha que pode mesmo ser contraditório ou conflitante?

VB - De modo algum. Todo trabalho iniciático tem como princípio fundamental o desenvolvimento do amor no coração. E esse amor se expressa socialmente na caridade. A caridade não é apenas aquele gesto de pegar no bolso um real e dar como esmola para uma pessoa que está na rua, pedindo. Caridade é lutar por uma sociedade mais justa, é ajudar as pessoas a terem um nível de raciocínio, nível cultural e intelectual mais elevado, é cuidar para que as pessoas tenham uma saúde melhor, para que tenham liberdade de se desenvolver plenamente e desabrochar todos os seus talentos.


SPS - Quer dizer que essa imagem do estudioso do esoterismo tradicional como uma pessoa voltada para si mesma, apenas para os seus próprios processos é uma imagem incompleta? Ele teria de traduzir isso, de dar sentido à sua vivência, numa ação concreta em direção ao próximo...

VB - Exatamente. Embora existam alguns que se identifiquem muito com essa imagem que você descreveu, voltados para si mesmos, para a sua própria evolução e indiferentes ao mundo, a grande maioria dos místicos, na verdade, se preocupa muito em ajudar a humanidade a progredir. Isto é um princípio da lei que os rosacruzes chamam A Lei de Amra, ou seja, aquilo que recebemos de bem, devemos passar adiante, devemos compartilhar com os outros. Nesse sentido, temos de lembrar que Louis-Claude de Saint-Martin dizia que a luta pela evolução e pelo aperfeiçoamento pessoal passa pela luta pela evolução de toda a humanidade.

MW - Inclusive, ainda dentro dessa questão, é bom a gente lembrar que, quando se é jovem, queremos transformar a sociedade, pura e simplesmente. Mais tarde, quando se adquire alguma maturidade, inclusive espiritual, pode-se ver melhor que a reforma social só é possível a partir da reforma do homem. E é essa a reforma que todos nós buscamos.


SPS - Perfeito. E hoje em dia existe, pelo menos no Brasil, a idéia de que a iniciação é uma coisa superada. De que hoje toda informação está disponível e que o esoterismo e o ritual estariam mortos. Conseqüentemente, as escolas do esoterismo tradicional, nas suas diversas vertentes, não teriam mais razão de existir. O que vocês acham disso?

VB - Em primeiro lugar, dizer que o esoterismo não tem mais sentido...não faz sentido! [risos] Até porque nós vivemos em uma época em que nunca se teve tanta informação esotérica disponível. Tantas obras foram publicadas! Nunca houve uma acessibilidade aos ensinamentos esotéricos tradicionais como temos hoje em dia. Então o que existe é exatamente o oposto. Há hoje muito mais interesse pelo esoterismo do que em qualquer outra época da humanidade. Pode observar isto. O esoterismo era coisa de meia-dúzia de gatos pingados, e hoje é quase um fenômeno de massa. Sobretudo no new age, altamente contestado por aí, que tem um lado positivo, no sentido de vulgarizar centos conhecimentos...

MW - ...e quanto ao ritual, ele existe desde que o homem é homem. Desde que o ser humano passou a se reunir em torno de uma fogueira, o ritual já existia. E esse ritual nunca vai morrer. Ele vai existir sempre, por mais tecnologia que se tenha à disposição, o ritual estará sempre presente no homem. Veja, até mesmo quando a família senta-se diante da TV para assistir a alguma coisa, de alguma forma ela assume uma atitude ritual. No seu sentido mais estrito, iniciático, o ritual tampouco deixará de existir. Porque ele lida com símbolos, com ícones e é o que permite, de alguma maneira – até citando Madame Blavastky – que você consiga se liberar dos véus e se comunique com sua própria essência.


SPS - Então nós poderíamos dizer que, com o tempo, os rituais mudam a forma e mantêm a essência? Em outras palavras, um ritual de hoje é, essencialmente, o mesmo de mil anos passados, mas em sua forma é diferente.

VB - Existem determinados elementos fundamentais que constituem um ritual. Eles são muito simples, e estão relacionados a gestos que representam os grandes conceitos da criação do Universo, da queda do homem no plano físico e da sua reintegração.

MW - ... da cosmogênese e da antropogênese...

VB - Perfeitamente. Mas esses rituais podem ser alterados ao longo do tempo, sem que o essencial seja mexido.


SPS - Daí a existência dos colégios de ritos, né? É preciso alguém que conheça muito a linguagem, a tecnologia do ritual, para que se possa alterá-lo. Porque uma modificação equivocada pode arruinar um ritual. Ou não?

MW - Claro que sim.

VB - Desde que um dos elementos essenciais seja retirado do ritual, aí então ele ficará mutilado. Agora, se você preserva os elementos essenciais – que em geral são muito simples, muito singelos e pouco numerosos – pode criar uma infinidade de rituais autênticos. E aí pouco importa se o ritual em questão tem três mil anos ou tem quinze dias.


SPS - E no que diz respeito à iniciação em si? Ela continua válida para a nossa época? Eu pergunto isso, porque algumas pessoas confundem iniciação com informação. Digamos, por exemplo, a experiência fora do corpo – que num passado até recente era algo restrito quase que somente às escolas esotéricas – está hoje em institutos, em uma série de pesquisas científicas e paracientíficas, e até em abordagens totalmente independentes. O mesmo pode ser dito de outras práticas, como a cura com as mãos, a visão à distância, etc. Uma vez que tudo isso hoje é de domínio público, o processo iniciático estaria superado. O que vocês acham? Isso tem algum fundamento?

VB - Não. A iniciação tem um caráter pedagógico. A respeito da iniciação, inclusive, nós poderíamos dizer o mesmo que o Mário acabou de dizer a respeito do ritual. O ritual é tão velho quanto o homem. Está presente em todos os aspectos de sua vida. O homem é um ser que ritualiza. O mesmo acontece com a iniciação Isso é até uma constatação da própria Antropologia.

MW - Tem mais um detalhe aí. O ritual tem um elemento que nenhuma tecnologia dá, que é o elemento mágico. Dentro de toda essa contextualização que o Vinícius colocou, há algo de transcendental, exatamente por criar um elemento mágico de ligação do indivíduo com o seu interior e com Deus.


SPS - A gente poderia dizer então que tanto o ritual como a iniciação são metodologias e não conhecimento. São formas de se lidar com o conhecimento...

VB - Exatamente! Acho que agora você resumiu tudo de uma maneira extraordinária. É exatamente isso. A iniciação é uma metodologia de trabalho, até mesmo porque transcende o intelecto, que é a área do conhecimento. Ela coloca o indivíduo em sintonia com os elementos cósmicos – como o Mário acabou de dizer – mas no nível da alma e não no nível objetivo, meramente intelectual. Porque senão bastaria você ler um ensinamento qualquer num manuscrito e isso seria suficiente. Mas o homem tem a necessidade do ritual e sempre teremos a necessidade do ritual. Não adianta os iconoclastas tentarem colocar abaixo a idéia do ritual e da iniciação, porque não vão acabar com isso...


SPS - Então, p'ra finalizar, eu gostaria de tocar num assunto espinhoso. Existem atualmente na Europa, particularmente na França, certos problemas em relação às ordens iniciáticas. Na França, por exemplo, que é considerada por muitos como a pátria espiritual do Ocidente, existe uma considerável má vontade de certos setores da sociedade em relação às ordens tradicionais – não especificamente em relação a uma, mas a todas elas. Alguns ramos importantes da Maçonaria, inclusive, estão sofrendo bastante com essa história, e várias outras ordens e tradições. O que vocês têm a dizer sobre isso?

MW - Há tantas leituras...Olha, eu diria que para aquilo que nós poderíamos chamar de governo obscuro do mundo – que está intimamente ligado ao capital e à indústria armamentista e a tudo que tem um parentesco com essa estrutura – as ordens iniciáticas são muito perigosas. Porque elas ligam o homem à divindade, ligam o homem ao seu próprio princípio, e desmascaram completamente essas estruturas, altamente danosas à humanidade, que são engendradas por esse governo obscuro. Acho que nós estamos em um momento cíclico, apocalíptico – aliás o Apocalipse não vem aí, já estamos nele há muito tempo – e tudo isso faz parte. Tudo o que caminha para a luz encontra barreiras imensas.


SPS - Eu fiz um contato recente com um dirigente de uma ordem tradicional, em Paris, com quem conversei longamente a esse respeito. Ele me disse que, de certa forma, no Brasil, nesse aspecto, nós estamos muito à frente da França, que está retornando aos tempos da Inquisição. Vocês acham que a América Latina poderia ter um papel importante na transmissão da Tradição daqui para diante, exatamente pelo fato da restrição das liberdades nessa área que está acontecendo na Europa?

VB - Eu acho que, no que diz respeito a essa oposição que se está fazendo às ordens tradicionais, o Mário disse o essencial. Efetivamente, a contra-iniciação é tão antiga quanto a iniciação. Sempre existiu. De fato, todas as organizações que estão lutando pela luz são sempre muito perigosas para aqueles grupos que querem uma humanidade sem luz, confusa, fácil de manipular. Mas eu vou ser franco com você. Eu não acho que isso não possa acontecer algum dia também aqui. Porque a contra-iniciação alcança todas as partes do mundo...


SPS - Ela também é internacional...

VB -Também é. E inclusive ela age aqui de uma certa maneira muito mais sorrateira, através da própria imprensa, com matérias que tentam denegrir organizações que estão trabalhando pelo bem da humanidade. Mas essas forças obscuras encontram um grande obstáculo na América Latina, e sobretudo no Brasil, que é essa nossa extraordinária cultura híbrida. Essa nossa extraordinária tolerância religiosa, que é uma coisa que faz parte do próprio ethos do brasileiro. E nós capitalizamos muito com isso. Porque é muito difícil aqui estigmatizar-se um grupo espiritualista, a não ser que ele seja, clara e comprovadamente, um grupo que faça lavagem cerebral, que seqüestra pessoas...


SPS - Ou seja, um grupo falsamente espiritualista...

VB - Isso. Um grupo que, sob uma fachada espiritualista é, na verdade, um grupo da obscuridade. Tirando isso, a luta religiosa, assim como a luta contra as ordens do esoterismo tradicional dificilmente encontra eco na sociedade brasileira em particular e latino-americana em geral. Que são sociedades formadas por vários povos e culturas.


SPS - Em termos públicos, o trabalho de vocês no GERME já começou? Vocês vão anunciar palestras e encontros? Em que pé está a coisa?

VB - É preciso frisar aqui que esse círculo cultural, na verdade, tem como objetivo promover os conteúdos da revista L'Initiation. Então eles podem ocorrer em qualquer lugar. Não existe sede e jamais haverá. Vez por outra nós escolhemos um lugar, que pode ser num bar, numa livraria, num espaço cultural qualquer, ou até mesmo no play ground de um prédio, e ali a gente reúne as pessoas para um debate.


SPS - Mas isso é divulgado ou é feito de boca a ouvido?

MW - Mais de boca a ouvido...

VB - ...uma coisa informal..

MW - Esse trabalho está sendo realizado aqui no Rio, com continuidade, desde que nós lançamos o primeiro número da L'Initiation e vai prosseguindo muito bem, cada vez com um afluxo maior de pessoas. Eu diria também que ele está em um estado embrionário em São Paulo, onde as pessoas estão se preparando para começar esse tipo de trabalho, e em Florianópolis também. São os dois, além do Rio, de que eu tenho conhecimento. E quanto ao Rio, as pessoas que eventualmente estejam interessadas em participar podem passar um e-mail p'ra nós - no endereço cartas@gnosis-ed.com.br - e a gente passa a informar sempre que houver um encontro. Lembrando que são atividades eminentemente culturais, voltadas para as tradições.


SPS - E no mais? Vocês queriam acrescentar alguma coisa?

MW - Eu queria dizer que o entrevistador é muito eficiente e muito simpático. [risos]


SPS - Obrigado! [risos]

MW - Eu queria também agradecer a oportunidade que você vem nos dando, através da sua homepage, desde o início da L'Initiation, e eu tenho certeza de que grande parte do êxito que nós estamos colhendo com esse trabalho, uma parcela se deve ao seu trabalho também.


SPS - O site fica aberto a vocês sempre!

MW - E nós também continuamos abertos ao SPS! [risos]


SPS - Então agora acho que já está na hora da gente sair e comer uma pizza, quem sabe tomar um chope!

MW - Grande idéia! A pizzaria nos espera! [risos]


___________________________________________________
Copyright © 2001 Marco Antonio Coutinho.
Não pode ser reproduzido, no todo ou em parte, sem autorização do autor.


o o o